sábado, 6 de agosto de 2011

"Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação (...) apoderou-se dela. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado.
(...)
O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir - dois braços fortes como aço, que a apertassem num beijo mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma.
(...)
À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na de um desejo intenso, de uma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro...
(...)
E o romanticismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços - e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.
Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe - para andar atrás do homem, um manganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo; cheira a suor; e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila «a Bola de Unto»."

[Eça]

(No Moinho)

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